sábado, 26 de março de 2011

Eu Creio

Cruzei as noites. Não no verão. No calor, a noite passava em branco para mim. Mas no inverno. Não guardo más recordações do inverno. Não sou nenhum mendigo, morador de rua. Não quero que sintam pena por não ter um lar onde se esquentar durante o frio. Não tenho toca para hibernar até que o verão volte. Gosto disso. Não preciso de cobertores ou casacos porque o frio me aquece. Como uma manta acolhedora o vento gelado das noites de inverno me envolve, me acalenta, me nina e faz-me sentir em casa. Minha casa é qualquer lugar. Minhas raízes estão no ar, diz a canção. Por onde o vento sopra, lá vou eu, arrastado pela familiridade que o ar frio me causa. Repito, não quero pena. Não preciso disso. A estação não é ruim. Há quem prefira praia e sol, mas pra mim, frio, noite iluminada pelos postes, vento gelado no rosto... isso é que é vida. Ouso dizer que me sinto até mais inteligente no inverno. É nessa época que paramos para pensar na vida, nos acomodamos depois das loucuras de verão.
Lembro-me de uma vez em que, sentado na calçado, uma senhora perguntou-me se o frio não me chateava, não incomodava. Fico chateado quando a corda do meu violão arrebenta. Me chateio quando minha roupa rasga. Me incomoda quando o ônibus me dá uma banho na sargeta. Frio não me incomoda. Chuva também não me incomoda. Claro, não me arrisco nela. A pior coisa pra minha profissão é ficar resfriado. Ser vagabundo hoje em dia não é facil. Mas debaixo de uma marquise, Deus me dá o imenso prazer de observar uma obra de arte, um quadro em movimento. A chuva refletida nos postes antigos do centro de Porto Alegre é algo magnífico. Cada gota caindo sobre o paralelepípedo, dando-lhe maior relevo do que realmente tem, e em seguida escorrendo pela rua da Ladeira. Nem as árvores, que durante o dia cobrem os raios de luz, são capazes de conter a água que cai do céu. Acima disso tudo, a cruz. A imensa cúpula emoldurada pelo céu meio negro, meio cinzento, permanece lá, sólida, concreta, intacta, quase viva. Há alguém me observando. Não vejo vultos. Nem um movimento no alto do santuário enxarcado. Talvez seja alguém um pouco acima. Na moldura...

Thiago M. Lacerda

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