quarta-feira, 30 de março de 2011

Bauman

O relógio no canto da tela marca três horas. Há cinco estou mirando a tela sem absolutamente nada a escrever. Cinco horas e nem uma palavra. Na verdade foram várias palavras, mas nada que pudesse ser considerado um pontapé inicial. O tempo aumenta a pressão. É, acho que deveria ter comprado aquela máquina de escrever. Pelo menos não estaria há cinco horas olhando para um caixa que emite luz. Meus olhos agradeceriam. Mas cá estou, sem máquina de escrever, sem frio, sem uivo do vento. Só uma noite clara e abafada, exatamente como as noites típicas de verão.
Preciso escrever um conto. Apenas um. Lembrei-me de Bauman. O conto é liquido, se adapta a qualquer recipiente. De tão liquido me escorre pelos dedos e derrama-se noite a fora. Meu conto deve estar por ai, em uma poça qualquer, prestes a evaporar aos primeiros raios de sol. É, acho que hoje não é a minha noite. Talvez o céu desabe meu conto novamente. Sonhos. Um conto não cai assim do céu. Mas, como água pode simplesmente chover sobre mim? Quem dera o conto fosse liquido. Zygmund Bauman estava errado. Se bem que, se não fosse liquido, como eu o perderia tão facilmente?
Deu! Chega! Nada de computador. Nada de máquina de escrever. Eu vou é pegar papel e caneta e escrever na banheira.

Thiago M. Lacerda

sábado, 26 de março de 2011

Eu Creio

Cruzei as noites. Não no verão. No calor, a noite passava em branco para mim. Mas no inverno. Não guardo más recordações do inverno. Não sou nenhum mendigo, morador de rua. Não quero que sintam pena por não ter um lar onde se esquentar durante o frio. Não tenho toca para hibernar até que o verão volte. Gosto disso. Não preciso de cobertores ou casacos porque o frio me aquece. Como uma manta acolhedora o vento gelado das noites de inverno me envolve, me acalenta, me nina e faz-me sentir em casa. Minha casa é qualquer lugar. Minhas raízes estão no ar, diz a canção. Por onde o vento sopra, lá vou eu, arrastado pela familiridade que o ar frio me causa. Repito, não quero pena. Não preciso disso. A estação não é ruim. Há quem prefira praia e sol, mas pra mim, frio, noite iluminada pelos postes, vento gelado no rosto... isso é que é vida. Ouso dizer que me sinto até mais inteligente no inverno. É nessa época que paramos para pensar na vida, nos acomodamos depois das loucuras de verão.
Lembro-me de uma vez em que, sentado na calçado, uma senhora perguntou-me se o frio não me chateava, não incomodava. Fico chateado quando a corda do meu violão arrebenta. Me chateio quando minha roupa rasga. Me incomoda quando o ônibus me dá uma banho na sargeta. Frio não me incomoda. Chuva também não me incomoda. Claro, não me arrisco nela. A pior coisa pra minha profissão é ficar resfriado. Ser vagabundo hoje em dia não é facil. Mas debaixo de uma marquise, Deus me dá o imenso prazer de observar uma obra de arte, um quadro em movimento. A chuva refletida nos postes antigos do centro de Porto Alegre é algo magnífico. Cada gota caindo sobre o paralelepípedo, dando-lhe maior relevo do que realmente tem, e em seguida escorrendo pela rua da Ladeira. Nem as árvores, que durante o dia cobrem os raios de luz, são capazes de conter a água que cai do céu. Acima disso tudo, a cruz. A imensa cúpula emoldurada pelo céu meio negro, meio cinzento, permanece lá, sólida, concreta, intacta, quase viva. Há alguém me observando. Não vejo vultos. Nem um movimento no alto do santuário enxarcado. Talvez seja alguém um pouco acima. Na moldura...

Thiago M. Lacerda

sexta-feira, 4 de março de 2011

Não aprendí a amar

Certa feita, estava eu em uma cidadezinha do interior. O inverno estava sendo rigoroso, e ao longe vi um belo casal caminhando na praça do chafariz. Conversavam serenamente. Na calçada, a capa do violão aberta, eu tocava sem me importar muito com o mundo. Mas confesso que aquele casal me chamou atenção. A canção entrou no piloto automático e, não sei se pela beleza de ambos ou pela briga que começara sem aviso, eu só prestava atenção nos dois.
O frio tornava aquele lugar quase mágico. O chafariz, as luzes, os banco, as árvores. A igreja ao fundo. Deus via tudo. Aquela briga não combinava em nada com o lugar. O casal que minutos atrás parecia feito para aquela imagem agora se destacava em meio à calmaria.
Mas diz porque tu vais embora. Mas diz porque tens tanto medo. De repente voltei à minha música. Enquanto dedilhava o violão, voltei ao dia em que partí. Porque fui embora? Tive medo? Depois de muito pensar, cheguei a conclusão de que eu não nasci para conviver com os outros. Tenho medo de longos relacionamentos. Não entendo como duas pessoas podem ser melhores amigos. Não acredito nesse tipo de amizade. Enquanto morei com meus pais, tive muitos amigos, mas nenhum igual aos amigos que conquistei na estrada. Talvez a maioria nunca mais me veja. Assim como não carrego saudades, creio que eu não seja uma figura sempre lembrada por todos, mas o que ficaram para as minhas histórias com certeza foram importantes, pois me ensinaram algo. Assim como esse casal, que me fez relembrar um dos motivos de ter partido. Nunca soube seus nomes, mas sei que observando-os sentí medo. Medo de relações longas, de muita aproximação. Intimidade demais é prejudicial à saude. Dezessete anos me fizeram compreender que o ser humano é livre, e que as pessoas tendem a prender-se umas às outras. Nunca me acostumei a esse tipo de relação. E assim descobri porque levo essa vida errante.
Depois de um longo beijo, os dois pararam de brigar. Admiraram um pouco o chafariz, deram-me algumas moedas e se foram. Levante-me e comprei um café.

Me apresento

Peço desculpas por não avisar, por ir embora, por não ter amado tanto. Principalmente, peço desculpas por não ter saudade. Não sei como estão agora. Não preciso saber como estão agora. Mas na vida que levo, não há espaço pra saudade. As pessoas que conheço, deixo onde estavam. Comigo só levo a viola, meu amor próprio, minha fé e a vontade de seguir por ai. Como um carro sedento por estrada, meus pés só descansam no asfalto, na eminência de um novo lugar. O mundo me dá tudo de que preciso. Tomo banho, faço a barba, almoço, janto, leio jornal, livros, toco violão. Ganho dinheiro do mesmo modo como o gasto. As pessoas tem necessidades que muitas vezes não conseguem saciar, e para isso existe o trabalho alheio. Caminhando por ai já encontrei dezenas, talvez centenas ou milhares de pessoas precisando de um serviço; qualquer serviço: pedreiro, carpinteiro, músico, pintor, officeboy... Graças a Deus, sempre existiu a necessidade de algo por onde passei. Graças a Deus, sempre tive tudo que precisei. Graças a Deus, sempre tive Deus comigo.
Não lembro exatamente quando decidi sair, muito menos porque. Talvez alguma desilusão amorosa, desgaste familiar. Realmente não lembro. Sei que tinha 17 anos, um diploma do ensino médio, um violão, dinheiro guardado e roupas boas. Cresci em meio a uma familia de classe média como outra qualquer: pai, mãe, irmão, tios, primos, avós... Pelo esforço do meu pai, estudei em bons colégios, fiz cursos... Me sinto ingrato quando penso nisso, mas aquela não era a minha vida. Em dado momento, coloquei minhas coisas numa mochila, o violão nas costas e partí.  No inicio, eu não tinha a menor ideia de onde ir. Até hoje não tenho. Passei quase uma semana numa pousada caindo aos pedaços, no centro da cidade. Cinco ou seis dias. Também não lembro. Pensei em voltar. Na verdade, foi a única vez que pensei em voltar.
Naqueles dias refletí muito. Cheguei a uma conclusão: Meus tênis tem uma sola bem grossa e meu violão me dá diversão e dinheiro a qualquer hora. A sola não era tão grossa e o dinheiro não era tão facil, mas decidi seguir, caminhar por ai. Passei por muitos lugares. Não sei onde. De cada lugar que passei, a única coisa que levo é o aprendizado. Para trás deixo os amigos, as mulheres, e o dinheiro. Também não carrego vícios.
Tive muitas oportunades nessa vida. Poderia ter sido um músico famoso, um publicitário conhecido, um advogado, dentista, jornalista. Mas decidi-me por ser vagabundo, profissão que com prazer exerço até hoje. Sou também contador de histórias, e se quiserem saber a minha, é com prazer que lhes contarei.