segunda-feira, 22 de março de 2010

Rangido

Não era eu naquele quarto. Não poderia ser eu. Naquela escuridão toda, os olhos eram as únicas coisas que ainda tinham luz própria, mas não era a luz da esperança. Era a luz do medo e da vingança. Sentado na velha cadeira de balanço que um dia sustentou meu bisavô, eu escutava um rangido secular. Ah, aquele rangido. Todas as noites, antes de dormir, aquele som atravessava as paredes de concreto do velho casarão e invadia meus ouvidos. Eu me lembrava daquele velho decrépito que não saía da cadeira. Tinha a barba longa, um chapéu sempre enterrado sobre a cabeça. Os olhos azuis, fundos, em meio ao rosto enrrugado trasmitiam pena a quem os visse. Não me lembro direito da sua voz. Na verdade, a única imagem que permanecia na memória era do rangido da cadeira de balanço de onde meu bisavô nunca saía. Agora quem estava lá era eu, e pela primeira vez em décadas pude ver nos espelho meus olhos brilhando outra vez. De amor? Não, meus olhos não brilharam de amor desde a minha juventude, quando se tornaram opacos... para sempre.
Eu era o decrépito agora, e o rangido era culpa minha. Muita coisa ainda era culpa minha. Não fui eu quem matou o velho! Mas ainda assim existia muita culpa pesando sobre meus ombros. Culpa... Culpa de quê? Porque eu me sentia culpado? A culpa foi de quem me fez assim! Quase meio século de amargura por um amor de juventude... Por alguns amores de juventude. Uma vida inteira de trabalho, reconhecimento e ascenção não puderam apagar a mágoa que se instalou no coração. E agora, eu me culpo por tudo que aconteceu. É verdade, não adianta jogar a culpa nela. Nem sei se ainda vive. Tudo aconteceu há tanto tempo.
Agora, só uma culpa me interessa. E essa será a última culpa que terei na vida.

Girou o tambor. Um movimento de dedo. Um estampido. E nunca mais se ouviu falar...

Thiago M. Lacerda

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